

"Todo pensamento é uma palavra escondida, guardada em seu mistério. Até que a palavra se revolta e quer nascer — como todo ser, como toda vida. Assim, a palavra já não é mais desconhecida. Ela vem à tona, potente e eficaz: com todo o seu enigma."
Márcio Rabelo
BEM-VINDO AO MEU MUNDO
Este mundo, o das outras letras, começou para mim aos 13 anos de idade, quando, habitante de uma casa sem livros literários, eu queria ler mas não havia o que ler. Então fui à casa de minha avó e, entrando no quarto de minha tia (eu sabia que lá havia livros), tomei um emprestado (mentira, foi às escondidas mesmo) e corri para a minha casa onde eu iniciei a leitura. Tratava-se do livro O ESTUDANTE, de Adelaide Carraro. Li-o em uma semana. Voltei ao quarto de minha tia, às escondidas, devolvi o exemplar e tomei outro "emprestado". Depois outro, depois outro. Quando os livros de minha tia se esgotaram, eu já tinha quase quinze anos e trabalhava na feira vendendo frutas e verduras. Com o dinheiro que eu recebia, passei a encomendar livros à editora Record em São Paulo (via telefonema, o que , à época, era muito caro!). Mas tudo o que se faz com prazer não tem preço. O livro chegava aos Correios, eu ia lá, pagava e recebia a encomenda. Lembro-me de ter comprado "O Reverso da Medalha" de Sidney Sheldon, "As Traças" de Cassandra Rios, "O Caso dos Dez Negrinhos" de Agatha Christie, "Mar Morto" de Jorge Amado, "A Insustentável Leveza do Ser" de Milan Kundera, etc etc. Assim iniciei a minha formação leitora para além da escola. Assim comecei a minha verdadeira vida. Do leitor em formação, sentia que meu Eu pedia, e comecei a compor poemas, muitos poemas, até que aos dezoito anos de idade eu escrevi meu primeiro livro, um romance intitulado BRASAS, ainda não publicado. De lá para cá, excetuando alguns desvios naturais pelos percalços da vida, tudo foi feito nesse sentido: o de desvelar as palavras e o de codificá-las para que outros as desvelem.
Márcio Rabelo

A HORA CONTÍNUA
Vê-se ao longe uma gota de sol
sobre a pedra
vislumbra-se ao lado uma dança de asas
repetidas
mais para a frente um assovio
voado
não se sabe de onde
Lá adiante
desmantelou-se um pedaço de hora esquecida
No pasto no capim na mata
há sempre a agonia tépida
de um instante perene
há sempre um silêncio que não estafa de calar
de vez em quando
no gigantesco pedaço de noite em visita
sopra-se um deslocamento de lua
ou de estrela
lanternas de um vaga-lumes
fogueiras
assombrosas lendas
livros emergidos de bocas memoriais
Quando logo mais
a aurora se anuncia
estendendo um lençol perfumado claro e azul
há sempre o olhar de alguém em algum lugar
não se sabe
há sempre um espasmo
deixado na beira do rio
ou um lamento
há sempre
não tarda um cansaço já amanhecido
pontual
não falha a envelhecida alegria
rugas e brancos cabelos
há sempre uma lembrança aquecida
há sempre
onde cada qual sabe
há sempre continuidades
ser-se
há sempre:
ser-se
Márcio Rabelo
